No dia 1º de janeiro de 1983, o jornal Tribuna de Lavras antecipava com letras garrafais, na capa de sua edição de número 857, a notícia do fechamento dos Cines Rio Grande e Ipê. O fato, ocorrido no dia 30 de janeiro daquele ano, marcaria o início do fim da era de ouro das salas de cinema na cidade.
Quase 41 depois dessa triste história, o Curta Lavras faz memória desses ícones da cultura cinematográfica através do olhar de dois frequentadores privilegiados destes espaços, o cinéfilo João Batista Carvalho (Proprietário do Sebo João da Praça) e o projecionista aposentado Júlio César Torquetti.
Fundado em 1949, o lendário Cine Ipê funcionou na avenida Pedro Salles, nº 160 (Luma Motos). Era o principal ponto de lazer e entretenimento na zona norte. Já o Cine Rio Grande, instalado na rua Chagas Dória, nº 48 (Big Móveis), serviu de palco para que plateias se emocionassem desde sua fundação em 1964.
Fachada do Cine Ipê, na zona norte da cidade. Sala de exibição foi fechada em janeiro de 1983 (Fotos: Arquivo Júlio César Torquetti)
Junto com o Cine Brasil, localizado na época na Praça Dr. Augusto Silva (Banco Bradesco), os imóveis das três salas de exibição pertenceram a Empresa Cinematográfica União Ltda, sociedade que reunia vários acionistas.
Cada uma delas possuía 400 lugares, o que dá uma ideia do lugar relevante que o cinema ocupava na vida da cidade. Assistir a um filme era um ritual sagrado e cotidiano para pessoas das mais variadas idades e classes sociais. O escuro da sala, o cheiro da pipoca e o filme na tela grande faziam a fantasia reinar soberana sobre a realidade.
Em pontos geográficos opostos no mapa de Lavras, os Cines Rio Grande e Ipê refletiam também realidades distintas. O primeiro oferecia ingressos populares e o segundo era frequentado por um público com melhor poder aquisitivo. No entanto, o amor pelo Cinema permanecia fiel em qualquer uma das duas salas.
Cine Rio Grande funcionou na rua Chagas Dória
Um amor que nasceu, no caso de João Batista Carvalho, em 1975, no Cine Ipê, durante a exibição do filme Romeu e Julieta, do diretor Franco Zefirelli. Foi a partir desse acontecimento que ele escreveria artigos, faria exposições e palestras sobre a Sétima Arte. O cinéfilo fundaria também a Lumiere, videolocadora que marcou gerações na cidade.
“O Cine Ipê era um lugar aconchegante e acanhado. Eu matava aula no Instituto Presbiteriano Gammon para poder ver as sessões quase todo dia. Eu tinha que pular o muro, mas valia a pena. A paixão pelo cinema falava mais alto. Eu assisti há mais de dois mil filmes naquele lugar” lembra João Batista.
Entrada do Cine Ipê, na zona norte da cidade: ingressos populares e troca de gibis
O aposentado Júlio César Torquetti, 68 anos, conheceu como poucos o Cine Ipê, já que sua família, constituída por seis irmãos, morou no subsolo da sala de exibição por 20 anos. Nasceria aqui outro caso de amor pelo Cinema. Seu pai, Júlio Torquetti (in memoriam), foi durante décadas projecionista no Cine Brasil.
Torquetti aprendeu a profissão com o pai e comandou o projetor de filmes do Cine Ipê durante 10 anos. Na tela grande, ele assistiu aos filmes de Amácio Mazzaropi, Bruce Lee e muitos clássicos hollywoodianos. “O Cine Ipê tinha matinês aos domingos e o público costumava trocar gibis no final das sessões”. Ele também trabalhou no Cine Brasil até o fechamento deste.
Hall de entrada do Cine Rio Grande
Curiosidades
O Cine Ipê também foi palco de momentos inesquecíveis, como em fevereiro de 1981, quando João Batista precisou fazer uma “vaquinha” com dois jovens de Pouso Alegre para que a exibição do filme Sonata de Outono, clássico do sueco Ingmar Bergman, pudesse ser realizada. Na época, por norma da empresa, uma sessão de cinema precisava ter um certo número de ingressos vendidos para que acontecesse.
O cinéfilo precisou ainda sair no meio da mesma sessão para comprar uma lâmpada usada no projetor que havia queimado. Ele resumiria dessa maneira essa experiência em um texto: “Às vezes, paga-se um preço muito alto para assistir a um bom filme”.
O gerente Áureo Rufini em sua mesa de trabalho: programação dos filmes datilografada na lendária máquina de escrever (arquivo João Batista Carvalho)
Menos frequentado pela dupla, o Cine Rio Grande também guarda momentos significativos. Uma de suas marcas registradas era a programação dos filmes sempre afixada na porta de vidro do cinema. A folha era datilografada religiosamente pelo gerente Aéreo Rufini (in memoriam). A última programação exibida antes do seu fechamento pode ser vista nessa página.
O Cine Rio Grande também teve o mérito de exibir o filme Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia (Hector Babenco) de forma simultânea com as capitais do país em 1978. Um feito para uma sala de exibição no interior. Outro filme, Um Taxi Roxo (Yves Boisset), deixou de ser exibido por falta de cartaz para decepção dos frequentadores no ano de 1977.
Adeus
Última programação de filmes exibida pelo Cine Rio Grande em 1983 (arquivo João Batista Carvalho)
Em 1985 seria a vez do Cine Brasil quase encerrar suas atividades, mas seu funcionamento persistiria por mais um tempo graças ao mesmo João Batista Carvalho, que trabalhou como gerente do local por um ano. A sala de exibição durou mais 11 anos, sendo fechada no dia 12 de julho de 1996.
Encerrava-se dessa maneira um importante ciclo da história cultural da cidade. Resta hoje a memória dos filmes assistidos e os momentos vividos por várias gerações nas salas de exibição. Os testemunhos de João Batista Carvalho e Júlio César Torquetti são a prova de que o amor pelo Cinema resiste e permanece vivo.
