“Quando se aprende a amar/ o mundo passa a ser seu”, Se eu fiquei esperando meu amor passar,
Por: Marco Bissoli
Eu era apenas um lobisomem juvenil quando em 13 de outubro de 1990 vi pela primeira vez a banda Legião Urbana ao vivo. O show integrava a bem sucedida turnê do quarto álbum do grupo, As Quatro Estações, que resultou em quase 30 apresentações pelo país.
Isso era um feito para uma banda que detestava tocar ao vivo e havia perdido seu baixista, Renato Rocha, o Negrete. Mas era a velha Legião Urbana de sempre para um jovem de apenas 16 anos, como eu, cheio de sonhos e com seus demônios interiores a flor da pele. Era a vida, a vida em abundância.
O trio formado por Renato Russo (vocalista), Dado Villa-Lobos (guitarra) e Marcelo Bonfá (bateria) surfava num céu de brigadeiro. A banda havia lançado As Quatro Estações em outubro de 1989, um ano antes, tendo nada menos que nove, das 11 canções do disco, emplacadas nas rádios.
Renato Russo vivia o auge de sua carreira e colhia os louros da glória. Já portador do HIV naquele momento, ele morreria vitimado pela AIDS em 1996. O novo álbum representava uma guinada rumo a um universo marcado por redenção e apocalipse.
No Estádio Municipal Bruno Daniel – Santo André (SP), apenas 10 mil gatos pingados viram o show da banda. Isso porque o espaço tinha capacidade para receber até 24 mil pagantes. Naquela noite de lua no ABC Paulista, pátria deste escrevinhador, uma garoa fina cobria a cidade.
A voz de tenor lírico de Russo abriu o show, rasgando o véu da noite, com a canção Fábrica, uma singela homenagem àquela região industrial, cinzenta e frenética. “De onde vem a indiferença/ Temperada a ferro e fogo? / Quem guarda os portões da fábrica?”, indagava o bardo.
Vieram ainda versões inusitadas de A Dança e Soldados, citações sobre Xuxa Meneguel, Cazuza, Sid Barrett, Jim Morrison, hits sobre hits (mesclados a clássicos de Rolling Stones, The Doors e Beatles) e conversas confessionais e hilárias com uma plateia obediente e fiel. Para mim, era um rito de passagem. Um batismo. Legio Urbana Vincit, capisce?
Renato Russo sempre foi uma espécie de messias e irmão mais velho de seu público. Uma persona – alô Julliany Mucuri!, capaz de falar, de forma simples e direta, com milhares de fãs. Um poeta sagaz cuja obra versava sobre a afirmação do eu diante da indiferença do mundo – esse lugar inóspito e quente. Ele soube como poucos fazer a self de si e do mundo.
Derramada no palco estava toda a pujança cruel, terna e roqueira das músicas e letras cinematográficas, o que transformava o ambiente numa igreja pagã. “Vocês são tão legais, espero que não esteja difícil para vocês aí na chuva, tá?”, disparava Russo a certa hora. A chuva era como um maná descido dos céus naquele país sombrio da Era Collor.
Foi mágico, intenso e inesquecível estar neste show aquela noite. A oportunidade de rever Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá na turnê “As V Estações”, no próximo dia 23 em Lavras, será uma forma de fazer memória daquele momento. Thanks, 035 Produções!
Não é nenhum saudosismo barato (aquele Marco já não mais existe!), claro, mas a presença de Renato Russo permanece como brasa acesa na memória. Sim, eu era apenas um lobisomem juvenil.
