quarta-feira , 27 novembro 2024
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Arquiteto e paisagista lavrense defende preservação da Serra da Moeda

O arquiteto e paisagista Carlos Fernando de Moura Delphim.

Serra da Moda, na região metropolitana de Belo Horizonte

Um novo projeto de lei (PL) foi protocolado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) com o objetivo de alterar os limites da unidade de conservação Monumento Natural Estadual da Serra da Moeda (Mona Moeda).Essa é terceira vez que deputados protocolam projetos de lei para alterar a área do Mona Moeda. A diminuição da unidade de conservação visa permitir a ampliação de projeto da mineradora Gerdau na região.

O arquiteto urbanista e paisagista lavrense Carlos Fernando de Moura Delphim escreveu um texto em defesa da Serra da Moeda. Com uma longa carreira no país e no exterior e vários livros publicados, ele foi contratado em 1977 para restaurar o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1985. Foi também o pioneiro na defesa dos jardins históricos no Brasil, passando a tratá-los como bens culturais segundo as normas internacionais de preservação.

Serra da Moeda 

Terem-me tratado assim! Eu, a memória do passado (…) expulso com lixo! O vento que respiro é fúria e ódio puro.

Ésquilo

Há meio século atrás, em um dos dias mais felizes de minha vida, fui passear em uma montanha vizinha do Retiro das Pedras em companhia de dois ou três colegas de arquitetura. Entre as suaves ondulações dos campos rupestres, atapetadas por um relvado de um luminoso verde- esmeralda, despontavam as flores mais fascinantes que eu jamais vira e nunca sonhara ver. Caminhávamos deslumbrados, como em um sonho. Súbito, nos deparamos com as ruinas de uma sólida fortificação, uma antiga fábrica clandestina de cunhagem de moedas, feita em pedras de grande volume, recobertas pela pátina dos séculos. Nunca ouvira falar de tal maravilha, que dera ao à Serra e ao pequeno povoado o nome de Moeda. Toda a natureza rupestre é um Paraíso, para as aves que a sobrevoam, para os peixes que nadam em suas águas cristalinas, para os insetos e todos os bichinhos e flores que a povoam e lhe dão vida e alegria.

Mapa do Sítio Arqueológico Histórico da ruinas da Fundição

 

Serras, Montanhas… 

Nossa paz permanecerá tão firme como as rochosas montanhas

William Shakespeare.

Serras, montanhas: são nossa ligação entre a terra e o céu, entre a Terra e o Céu. Mesmo sendo tão densas, volumosa e pesadas erguem-se, na tentativa de alçar-se às vastidões celestiais. Altas, altivas, verticais, nuas ou vestidas de densas ou vaporosas nuvens luminosas, cientes de que não podem se desligar da terra, buscam o místico enlace entre a fluida transcendência do céu e a crua densidade da terra.

As montanhas são sagradas, nelas moram os deuses terrenos. São a escada que conduz os humanos em sua vã busca de ascensão aos páramos celestiais. Sua estabilidade, imutabilidade, imperecibilidade, sua pureza, beleza e significado sagrado não as poupam do ataque dos desalmados que vêm parasitando e corroendo o planeta.

As alterosas Minas Gerais, terra das montanhas, que julgávamos serem eternas, são vistas por sentimentos de adoração por seus habitantes. Para os saqueadores não passam de uma produtiva mina de riquezas. Extraem o máximo que podem carregam levam tudo o que tem valor material, desprezando qualquer significado transcendental. Destroem florestas, cavernas, sítios arqueológicos. Em sua sanha destruidora, deixam-nos, a nós, a nossas águas, nossas terras, nossos ares, nosso céu, nossas vidas e as de nossas plantas e animais, o lixo, rejeitos, resíduos, os danos e prejuízos. Destroem nossas paisagens, nossa cultura, sem que nada legar em retribuição. Suas barragens explodem cobrindo os verdes vales de uma lama abjeta como suas pútridas dejeções.

Os povos são indestacáveis de sua paisagem. As montanhas definem o limite da forma como são percebidas. Uma família via, a cada manhã, um acidente geográfico como o Pico do Itabirito. As crianças imaginavam que nele existia vida, cavernas, cursos d’água, seres mágicos. Os pais sonhavam em levar os filhos para conhecê-lo. De repente, vão chegando veículos e máquinas, pesadas, provocando vibrações, fazendo a casa tremer e se encher de poeira. Chegaram os desalmados, os infames encarregados da corrosão da Beleza e da Vida.

Quantas montanhas que narram nossa história em suas trilhas e caminhos reais, em suas penedias e vales foram, estão sendo ou querem que sejam degradadas, junto com seus povoados, igrejas, cemitérios: Itatiaiuçu, Brumadinho, Igarapé, Mateus Leme, Mariana, Rola Moça, Brigadeiro, Caparaó, Espinhaço! Somente o minério é considerado como uma riqueza, nada mais sutil é digno de valor: quantas flores e animaizinhos que nem chegaram a ser conhecidos pela Ciência, vão poluídos, degradados, destruídos, extintos. Quantos habitantes se empobrecerão para enriquecimento de quem-sabe-quem?

Só o minério, só o ferro tem valore vale, só seu forte magnetismo é capaz de atrair os desumanos. O ferro atrai o ferro, o ferro dos corações sem alma. Os corações cruéis não se comovem com um beija-flor voejando sobre uma flor de um campo de canga. Não pensa se ele está chocando ovos em seu ninho ou se tem filhotes para alimentar. Não importa, na sofreguidão para arrancar o ferro das entranhas de nossas Min as Gerais, os tratores vão esmagando tudo a sua frente.

Nosso planeta é chamado planeta telúrico, por sua composição rochosa, mais densa e compacta do que os planetas ditos gasosos. A Terra é composta por mais de 30% de ferro. Para que destruir nossas paisagens, nossas comunidades, nossas vidas minerando um elemento tão profuso? Para que buscá-lo em nossas montanhas se existe por toda parte? Por que destruir uma beleza que poderia ser fruída e protegida por nossos sucessores que, suponho, não serão tão insensíveis ao mágico encanto da Vida? Oh,

bárbaros desalmados! Devoram e corrompem a carne materna, conspurcam e devoram o seio que os alimenta. São piores do que os caçadores de cabeça de Sumatra que usavam cabeças humanas como dinheiro. Vocês vendem a carne materna e tratam seus filhos humanos como meros robôs, que escraviza com salários irrisórios.

Os desalmados parasitários já voltam seus olhos ávidos para o potencial ferrífero de muitas outras serras, se não para todas, como a Serra da Gandarela. Para eles, não importa se é o berço e se protege o maior aquífero da região; se abriga as nascentes dos afluentes das bacias do rio das Velhas e do rio Doce; se ali se preserva um dos últimos fragmentos florestais da transição da Mata Atlântica para o Cerrado. Só lhes interessa a possibilidade de desentranhar de suas vísceras mais de vinte milhões de toneladas de minério de ferro ao longo de uma dezena e meia de anos.

Todo político, administrador público, trabalhador da justiça, todos os que detém poder decisório, todos têm seu preço. Há poucas exceções: os que têm valor, que não têm preço e que não são venais. A corja que se autodenomina elite, recebe propinas dos poderosos e passa a acreditar que a eles se igualam. Declarações internacionais de valor universal de sítios e paisagens por sua importância histórica e cultural; reconhecimento de valores geológico, geomorfológico, paleontológico, ecológico, biológico; sítios arqueológicos; tombamentos; declaração como monumento nacional, estadual, municipal… Tudo pode ser jogado por terra como um favor aos endinheirados. Basta pingar uns trocados nas mãos trêmulas dos sôfregos prostitutos, que eles se sentirão agradecidos e bem recompensados… Nada é sagrado diante do tilintar das moedas atiradas pelos opulentos à corja insaciável. E a opinião pública? Opinião pública? Que a cria e divulga é a mídia, paga pelos empresários, sem ouvir o público.

Corrupção não é apenas é uma forma de desonestidade ou crime praticado por uma pessoa ou organização a quem é confiada uma posição de autoridade, a fim de obter benefícios ilícitos ou abuso de poder para ganho pessoal. É também corromper, com ganância, o Planeta e os bens que ele nos oferece.

As Sagradas Serras

Que estranho é sermos privados de um conhecimento e depois se conceder a capacidade de tornar sagrado aquilo que já era sagrado.

Santa Catarina de Siena

Minha Mãe, a Terra, sei que amais a todos seus filhos intensa e igualmente. Amais da mesma forma, anjos e homens; seixos e rochedos; ventos e águas; orquídeas e mamonas; beija-flores e urubus; lesmas e harpias; opressores e oprimidos. Vós estais doente, com um grave processo infeccioso. Um pequeno organismo se multiplicou desordenadamente em vosso corpo e ameaça vossa vida e a nossa. Vejo-vos, ora febril, com insuportáveis temperaturas, ora com hipotermia; alternais vossa respiração rápida e curta com falta de ar e com sopros extenuantes como ventanias bruscas, furacões, tornados; como suais, vosso suor excessivo inunda vosso corpo, tanto provoca calmarias quanto tsunamis; hei-vos, agitada por tremores físicos: terremotos, maremotos, erupções vulcânicas; surgem rachaduras em vossa crosta; reina uma confusão mental em vosso mundo, ninguém mais se entende.

Peço ao Pai celestial, a Deus e a todos os deuses, de todos os povos, de todos os tempos, que nos deem forças para enfrentar essa maldita degenerescência que destrói nossa raça, arrastando consigo nossa Mãe. Invoco as forças terrenas e celestiais para que nos orientem sobre como impedir que nossa Mãe expire e, junto com ela, todos nós, seus filhos.

O Apocalipse – Autor desconhecido

EPÍLOGO

Criou um deserto ao qual chama de Império.

Tácito

A Serra da Moeda pode ser o primeiro campo de batalha onde os homens sãos e sensatos venham a enfrentar o inimigo. Retomar a beleza de suas paisagens, povoadas de recordações, impedir que mananciais venham a secar, que os rios sejam poluídos e assoreados; que a vegetação de canga não se extinga, levando junto insetos polinizadores; que nossos desafetos assinem um pacto de paz e solidariedade com os sítios e as formações geomorfológicas, geológicas, paleontológicas, hídricas, biológicas, ecológicas, antrópicas de suas faldas. Que nossa Serra, nossos depósitos ferríferos não se transformem em moeda para seus destruidores.

Lavras, 02 de fevereiro de 2024

Carlos Fernando de Moura Delphim

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